O SEGREDO DE JONATHAN
Já se passaram um pouco mais de vinte anos que minha amada morreu e,
desde então, espero amarguradamente a morte. Sim, o homem de terno preto e de
olhar feroz prometera que cedo ou tarde viria me buscar. Decidi descrever aqui,
nesta folha de papel, que guardarei junto a mim na minha carteira, como tudo
ocorreu, para que quando ‘ele’ vier, minha morte não se torne oculta,
misteriosa.
Era noite de 31 de outubro de
1985. Havia acabado de chegar em casa depois de ter passado cinco dias em São
Paulo onde com muito esforço consegui realizar meu sonho de me tornar
violinista de uma importante orquestra sinfônica. Depois de receber os
cumprimentos de meus pais pela minha conquista, disse-lhes que iria naquele
momento ver Bela, minha amada, mas vejam bem, minha mãe que tivera o sorriso
arrancado dos lábios naquele momento e os olhos cobertos por uma mortalha de
tristeza, disse-me:
— Jonathan, terá que ser muito forte. Deus a chamou meu filho, Isabela
morreu... Houve uma explosão de gás no apartamento dela um dia após sua
partida... Fora sepultada há três dias no cemitério municipal. Perdoe-nos filho,
não pudemos avisar antes...
Aquilo para mim fora indescritivelmente horrível. Não queria acreditar e
muito menos aceitar aquele fato. Sem dizer palavra, apanhei automaticamente meu
violino e corri para o cemitério. Cheguei lá por volta das 20h. A lua imperava
majestosa. O vento fresco lambia minha face e produzia ruídos indistintos
naquele lugar lúgubre. A lâmpada dos postes com aquela luz amarelada, aumentava
ainda mais a atmosfera melancólica. Procurei angustiadamente por seu túmulo,
ignorando o grande aviso na entrada “Proibido andar sobre os túmulos, risco de
desabamento” e não demorei a encontrar sua foto numa sepultura simples. Lá
estava o rosto da minha amada, exibindo um alegre sorriso, os vívidos olhos
grandes se destacando em seu lindo rosto e sob a foto o epitáfio “Fora um anjo
na terra, agora servirá a Deus no céu”.
Oh, como amaldiçoei este mundo perverso naquele momento! Aquilo era a
maldita prova de que minha amada estava realmente sob aquela laje de concreto,
se decompondo preguiçosamente. A dor, desespero e a angustia me dominavam e
corroíam meu coração, minha vida. Céus, havia voltado de viagem louco para
partilhar minha felicidade com ela e qual fora meu infortúnio? Ver que o seu
fim chegara antes de começar a imaginá-lo.
O vento consolava-me secando minhas lágrimas, mas sempre surgiam outras,
claro, até hoje surgem, principalmente á noite, quando deitado em companhia
apenas de meu travesseiro, me lamento a pensar que ela poderia estar comigo,
vivendo nesta casa de campo onde vivo compondo e estudando música. Sentei-me
então sobre a laje, diante de sua foto e pus-me a tocar por algum tempo. O som
fluía doce, triste e original. Traduzia através daquelas cordas de aço, minha
profunda tristeza. Em seguida em sua homenagem, toquei as músicas que ela mais
gostava. Enquanto tocava, como sempre, a música me dava forças, serenidade e
paz, parecia me transportar para um jardim, ‘o jardim dos anjos’, como gosto de
pensar. Mas ao terminar, a tristeza me invadira de novo e parecia se
intensificar mais na medida em que absorvia aquela desgraça. Entorpecido de
tristeza, pus-me então a gritar chamando seu nome. Gritava o quanto queria ter
a oportunidade de me despedir, ao menos por alguns segundos; o quanto desejava
tomá-la nos braços uma última vez e dizer olhando naqueles olhos o quanto a
amava. Oh, senti tanta necessidade de tê-la diante de mim, independente de como
estivesse que senti ser capaz de tudo para conseguir. Foi então que gritei
desesperado e com voz rouca “Daria minha alma ao Diabo para ter essa
oportunidade”. E ao dizer isso, o vento
soprou impetuoso e um rodamoinho surgiu e me envolveu por alguns segundos;
sobressaltei-me ao som do miado agudo de um gato num ponto distante atrás de
mim. Ignorei tudo isso. É verdade que disse aquilo desejando de todo coração,
mas no fundo não acreditava que o Diabo fosse mesmo me ouvir, nem ao menos era
convicto de sua existência, porém, tive ao menos que tentar.
Consultei então o relógio, passavam das 21h, experimentei uma sensação
estranha naquele momento, pois lembrei que era noite de Halloween. Noite em que,
segundo a crença Celta, os espíritos perversos saiam das profundezas do abismo
para fazerem proeza na terra. Decidi então voltar pra casa, tomar um banho e
logo pela manhã ir buscar consolo numa igreja. Então, quando me levantei, senti
a laje estremecer sobre meus pés e rapidamente saltei dali; lancei um último
olhar lacrimoso naquele rosto angelical e parti, mas depois de ter andando uns
sete passos, ouvi algo que gelou meu coração. Era uma voz, chamando meu nome. Não
me era familiar. Respirei fundo, olhei em volta, mas a luz amarelada dos postes
não revelara presença de ninguém ali, a não ser que estivesse atrás das árvores
retorcidas. Para suavizar um pouco do medo, pus-me a pensar que aquilo fora
fruto de minha imaginação, uma vez que me encontrava temeroso. Continuei a
seguir em direção ao meu carro que se encontrava defronte ao portão, do qual
havia de pular para dar o fora dali, mas novamente, depois de ter andado mais
um pouco, outro som me deteve, agora fora o som abafado de algo, talvez punhos,
esmurrando madeira.
Respirei fundo novamente e olhando ao redor perguntei se havia algum
indivíduo ali. Disse que se não aparecesse iria encontrá-lo e quebrar seu nariz
para aprender que ali era o último lugar em que deveria pregar peças em alguém,
muito menos numa noite como aquela. O silêncio se intensificou, até o vento
havia parado de brincar com as folhas, mas logo depois a voz abafada, rouca e
monótona chamou-me novamente. Estremeci ao perceber que ela parecia provir do
lugar onde acabara de deixar. Tremi compulsivamente. A única coisa que pensei
foi “Sepultaram Isabela viva! Céus, será possível?”
Com passos lentos e lutando para conter o medo, me aproximei do túmulo e
chamei-a. Não respondeu. Apenas ouvi o som das batidas na madeira e em seguida
nada para de repente o silêncio ser quebrado por algo que imaginei ser a tampa
do caixão sendo aberta e jogada de lado.
Sentia-me horrorizado e excitado com a idéia de ainda estar viva e
indeciso entre a vontade de ficar e correr. Então, resolvi abaixar-me até meu
ouvido quase tocar a laje fria e chamei-a novamente. Ouvi apenas o barulho enlouquecedor
que poderia ser seu corpo se debatendo ali.
Decidi então correr para a cidade e voltar muito bem acompanhado, mas ao
me erguer ansioso e trêmulo, as portas do horror se abriram para mim, sim, a
desgraçada laje ruiu, abriu-se sob meus pés como uma oculta bocarra monstruosa.
Receio que devido ao espanto e medo, fiquei inconsciente, mas fora por
alguns segundos, o odor nauseabundo de crisântemos apodrecendo mesclado com o
cheiro árido de carne queimada me despertara. Quando recobrei totalmente os
sentidos e me vi deitado sobre aquele corpo destruído, acreditem, o medo e o
horror amenizaram e eu a amei. O fato de que ela estava apenas com alguns fios
diminutos de cabelo lembrando a esponjas de aço, com aquela pele escura,
deformada e com aquele corte profundo na cabeça revelando miolos tostados, não
me impediria jamais de amá-la. Juro. Eu a via com os olhos do verdadeiro amor.
Era a mulher que me fizera feliz, me dera força nas horas difíceis, que
estivera sempre presente quando precisava... Não, não poderia deixar de amá-la
mesmo que a beleza a tivesse abandonado.
Quando constei que seus olhos estavam arregalados, fitando-me, céus, como
me alegrei. “Está realmente viva!”, pensei alucinado, “Irei cuidar dela!” e
encarando aqueles olhos eu disse o quanto a amava. Ela apenas me encarava e
sorria, um sorriso que era só dentes e gengivas pretas pois o fogo destruira
seus lábios. Mas como disse, as portas do horror haviam sido abertas para mim,
de súbito, ouvi passos que se aproximavam e quando olhei para cima, vi um
estranho homem vestido num fino terno preto. Não pude ver seu rosto devido a
sombra que seu chapéu fazia em seu rosto, mas vi um brilho animalesco em seus
olhos. Ia dizer-lhe para que me ajudasse a tirá-la dali, mas antes mesmo de
abrir a boca, ele disse maliciosamente:
_ Trato feito. Tá aí a oportunidade que queria. Confesso que é impossível
trazer a alma dela de volta, pois onde se encontra agora, não ouso ir.
Lembre-se, um dia virei buscar o que é meu, meu chapa, cedo ou tarde.
Ele então partiu e com isso o medo se apossou de mim novamente. Me dei
conta de que estava lidando com o sobrenatural Céus, havia me esquecido do
trato que fizera, e como fui tão tolo ao pensar que ela poderia estar viva,
estando há três dias sepultada, com aquele terrível cheiro e ainda com ferimentos
tão profundos!
Maldito medo e amor que sufocaram meu raciocínio!
Cheio de horror me ergui para fugir dali, mas aquilo que já não ousaria a
chamar de Bela, olhando-me agora malignamente e arreganhando ainda mais os
dentes como um cão, me dominara num abraço de urso. Desesperado, lutei para
escapar e depois de apanhar e bater, consegui fugir. Lancei um último olhar no
túmulo quando já havia pulado o portão. A luz amarelada dos postes iluminava-o
silencioso e ameaçador.
Na manhã seguinte o coveiro Nicolas
se encarregou de fechá-lo e pelo que soube encontrara o caixão fechado e o
corpo dela na mesma posição em que a enterrara. Jamais tive ou terei coragem de
dizer tudo isso a alguém, pois temo parar num hospício...
Céus, já são mais de três da madrugada. E nesse momento ouço leves
batidas na porta. Quem será? Meu corpo está arrepiado devido à sinistra
intuição que me diz que é aquele ser traiçoeiro e de olhar feroz. Paranóia! Devo
abrir a porta? ... Vou abrí-la, se for algum amigo ou parente, apagarei este
último parágrafo, se não o fizer, hora, então infelizmente chegara o meu fim.
Autor: Bruno Wolff/ 2010
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