quinta-feira, 10 de julho de 2025

 Toc..

Foto por: Bruno Wolff
Toc... toc...

Toc... toc...

Meus dedos sangram de tanto bater em sua janela. Abra para mim. Deixe-me entrar. Trago dentro de mim um circo itinerante. Abra e olhe. Eu me contorço com meus ossos e nervos enferrujados e quebro meu pescoço, por você. Ando na corda bamba com meus pés calosos, lá em baixo o concreto sorri para mim. Danço uma valsa triste com minha sombra sob sua janela. Faço mil malabares com facas sem me importar de rasgar-me inteiro. Tudo isso para que seus olhos repousem um segundo em mim.

Abra a janela e veja este palhaço triste. Tenho tanto amor para dar que não sobrou uma gota para mim. Tudo por você. Abra a janela. Toc... toc... Aqui fora está tão frio. Deixe-me entrar, eu suplico.

Lembra de quando nossos olhos se encontraram brevemente pela primeira e última vez?

Agora estou aqui, desde sempre, esperando ver surgir seu rosto na janela.

Estou com fome, pode me dar um pouco de amor e um copo de atenção? Aqui está tão frio e me sinto tão só! Esses palhaços e bailarinas não são nada para mim. Escarneço deles e eles de mim.

Ei... por favor, abra a janela. Me veja, eu existo!

Pode me jogar um cobertor? Ele me protegerá dos olhos escarnecedores que me rodeiam.

Toc...toc...

Minhas lágrimas secaram e o que restou neste rosto de palhaço é uma careta congelada de tristeza.

Toc... toc...

Sua janela está tão perto das estrelas, e eu aqui sob as sombras das árvores. Você, envolta pela luz, e eu envolto pela dor.

Toc... toc...

Abra só uma festinha, ver o brilho do seu olho bastará por esta noite sem fim.

Toc..toc...

Cadela infame, eu a amo tanto. Abra a janela e receba o meu amor mofado. Engula-o todo e se engasgue. Só assim terei minha recompensa por amar-te tanto. Toc...toc...

 

Por Bruno Wolff.

sexta-feira, 4 de julho de 2025


 

 

 

O SEGREDO DE JONATHAN

 

Já se passaram um pouco mais de vinte anos que minha amada morreu e, desde então, espero amarguradamente a morte. Sim, o homem de terno preto e de olhar feroz prometera que cedo ou tarde viria me buscar. Decidi descrever aqui, nesta folha de papel, que guardarei junto a mim na minha carteira, como tudo ocorreu, para que quando ‘ele’ vier, minha morte não se torne oculta, misteriosa.

  Era noite de 31 de outubro de 1985. Havia acabado de chegar em casa depois de ter passado cinco dias em São Paulo onde com muito esforço consegui realizar meu sonho de me tornar violinista de uma importante orquestra sinfônica. Depois de receber os cumprimentos de meus pais pela minha conquista, disse-lhes que iria naquele momento ver Bela, minha amada, mas vejam bem, minha mãe que tivera o sorriso arrancado dos lábios naquele momento e os olhos cobertos por uma mortalha de tristeza, disse-me:

— Jonathan, terá que ser muito forte. Deus a chamou meu filho, Isabela morreu... Houve uma explosão de gás no apartamento dela um dia após sua partida... Fora sepultada há três dias no cemitério municipal. Perdoe-nos filho, não pudemos avisar antes...

Aquilo para mim fora indescritivelmente horrível. Não queria acreditar e muito menos aceitar aquele fato. Sem dizer palavra, apanhei automaticamente meu violino e corri para o cemitério. Cheguei lá por volta das 20h. A lua imperava majestosa. O vento fresco lambia minha face e produzia ruídos indistintos naquele lugar lúgubre. A lâmpada dos postes com aquela luz amarelada, aumentava ainda mais a atmosfera melancólica. Procurei angustiadamente por seu túmulo, ignorando o grande aviso na entrada “Proibido andar sobre os túmulos, risco de desabamento” e não demorei a encontrar sua foto numa sepultura simples. Lá estava o rosto da minha amada, exibindo um alegre sorriso, os vívidos olhos grandes se destacando em seu lindo rosto e sob a foto o epitáfio “Fora um anjo na terra, agora servirá a Deus no céu”.

Oh, como amaldiçoei este mundo perverso naquele momento! Aquilo era a maldita prova de que minha amada estava realmente sob aquela laje de concreto, se decompondo preguiçosamente. A dor, desespero e a angustia me dominavam e corroíam meu coração, minha vida. Céus, havia voltado de viagem louco para partilhar minha felicidade com ela e qual fora meu infortúnio? Ver que o seu fim chegara antes de começar a imaginá-lo.

O vento consolava-me secando minhas lágrimas, mas sempre surgiam outras, claro, até hoje surgem, principalmente á noite, quando deitado em companhia apenas de meu travesseiro, me lamento a pensar que ela poderia estar comigo, vivendo nesta casa de campo onde vivo compondo e estudando música. Sentei-me então sobre a laje, diante de sua foto e pus-me a tocar por algum tempo. O som fluía doce, triste e original. Traduzia através daquelas cordas de aço, minha profunda tristeza. Em seguida em sua homenagem, toquei as músicas que ela mais gostava. Enquanto tocava, como sempre, a música me dava forças, serenidade e paz, parecia me transportar para um jardim, ‘o jardim dos anjos’, como gosto de pensar. Mas ao terminar, a tristeza me invadira de novo e parecia se intensificar mais na medida em que absorvia aquela desgraça. Entorpecido de tristeza, pus-me então a gritar chamando seu nome. Gritava o quanto queria ter a oportunidade de me despedir, ao menos por alguns segundos; o quanto desejava tomá-la nos braços uma última vez e dizer olhando naqueles olhos o quanto a amava. Oh, senti tanta necessidade de tê-la diante de mim, independente de como estivesse que senti ser capaz de tudo para conseguir. Foi então que gritei desesperado e com voz rouca “Daria minha alma ao Diabo para ter essa oportunidade”.  E ao dizer isso, o vento soprou impetuoso e um rodamoinho surgiu e me envolveu por alguns segundos; sobressaltei-me ao som do miado agudo de um gato num ponto distante atrás de mim. Ignorei tudo isso. É verdade que disse aquilo desejando de todo coração, mas no fundo não acreditava que o Diabo fosse mesmo me ouvir, nem ao menos era convicto de sua existência, porém, tive ao menos que tentar.

Consultei então o relógio, passavam das 21h, experimentei uma sensação estranha naquele momento, pois lembrei que era noite de Halloween. Noite em que, segundo a crença Celta, os espíritos perversos saiam das profundezas do abismo para fazerem proeza na terra. Decidi então voltar pra casa, tomar um banho e logo pela manhã ir buscar consolo numa igreja. Então, quando me levantei, senti a laje estremecer sobre meus pés e rapidamente saltei dali; lancei um último olhar lacrimoso naquele rosto angelical e parti, mas depois de ter andando uns sete passos, ouvi algo que gelou meu coração. Era uma voz, chamando meu nome. Não me era familiar. Respirei fundo, olhei em volta, mas a luz amarelada dos postes não revelara presença de ninguém ali, a não ser que estivesse atrás das árvores retorcidas. Para suavizar um pouco do medo, pus-me a pensar que aquilo fora fruto de minha imaginação, uma vez que me encontrava temeroso. Continuei a seguir em direção ao meu carro que se encontrava defronte ao portão, do qual havia de pular para dar o fora dali, mas novamente, depois de ter andado mais um pouco, outro som me deteve, agora fora o som abafado de algo, talvez punhos, esmurrando madeira.

Respirei fundo novamente e olhando ao redor perguntei se havia algum indivíduo ali. Disse que se não aparecesse iria encontrá-lo e quebrar seu nariz para aprender que ali era o último lugar em que deveria pregar peças em alguém, muito menos numa noite como aquela. O silêncio se intensificou, até o vento havia parado de brincar com as folhas, mas logo depois a voz abafada, rouca e monótona chamou-me novamente. Estremeci ao perceber que ela parecia provir do lugar onde acabara de deixar. Tremi compulsivamente. A única coisa que pensei foi “Sepultaram Isabela viva! Céus, será possível?”

Com passos lentos e lutando para conter o medo, me aproximei do túmulo e chamei-a. Não respondeu. Apenas ouvi o som das batidas na madeira e em seguida nada para de repente o silêncio ser quebrado por algo que imaginei ser a tampa do caixão sendo aberta e jogada de lado.

Sentia-me horrorizado e excitado com a idéia de ainda estar viva e indeciso entre a vontade de ficar e correr. Então, resolvi abaixar-me até meu ouvido quase tocar a laje fria e chamei-a novamente. Ouvi apenas o barulho enlouquecedor que poderia ser seu corpo se debatendo ali.

Decidi então correr para a cidade e voltar muito bem acompanhado, mas ao me erguer ansioso e trêmulo, as portas do horror se abriram para mim, sim, a desgraçada laje ruiu, abriu-se sob meus pés como uma oculta bocarra monstruosa.

Receio que devido ao espanto e medo, fiquei inconsciente, mas fora por alguns segundos, o odor nauseabundo de crisântemos apodrecendo mesclado com o cheiro árido de carne queimada me despertara. Quando recobrei totalmente os sentidos e me vi deitado sobre aquele corpo destruído, acreditem, o medo e o horror amenizaram e eu a amei. O fato de que ela estava apenas com alguns fios diminutos de cabelo lembrando a esponjas de aço, com aquela pele escura, deformada e com aquele corte profundo na cabeça revelando miolos tostados, não me impediria jamais de amá-la. Juro. Eu a via com os olhos do verdadeiro amor. Era a mulher que me fizera feliz, me dera força nas horas difíceis, que estivera sempre presente quando precisava... Não, não poderia deixar de amá-la mesmo que a beleza a tivesse abandonado.

Quando constei que seus olhos estavam arregalados, fitando-me, céus, como me alegrei. “Está realmente viva!”, pensei alucinado, “Irei cuidar dela!” e encarando aqueles olhos eu disse o quanto a amava. Ela apenas me encarava e sorria, um sorriso que era só dentes e gengivas pretas pois o fogo destruira seus lábios. Mas como disse, as portas do horror haviam sido abertas para mim, de súbito, ouvi passos que se aproximavam e quando olhei para cima, vi um estranho homem vestido num fino terno preto. Não pude ver seu rosto devido a sombra que seu chapéu fazia em seu rosto, mas vi um brilho animalesco em seus olhos. Ia dizer-lhe para que me ajudasse a tirá-la dali, mas antes mesmo de abrir a boca, ele disse maliciosamente:

_ Trato feito. Tá aí a oportunidade que queria. Confesso que é impossível trazer a alma dela de volta, pois onde se encontra agora, não ouso ir. Lembre-se, um dia virei buscar o que é meu, meu chapa, cedo ou tarde.

Ele então partiu e com isso o medo se apossou de mim novamente. Me dei conta de que estava lidando com o sobrenatural Céus, havia me esquecido do trato que fizera, e como fui tão tolo ao pensar que ela poderia estar viva, estando há três dias sepultada, com aquele terrível cheiro e ainda com ferimentos tão profundos!  

Maldito medo e amor que sufocaram meu raciocínio!

Cheio de horror me ergui para fugir dali, mas aquilo que já não ousaria a chamar de Bela, olhando-me agora malignamente e arreganhando ainda mais os dentes como um cão, me dominara num abraço de urso. Desesperado, lutei para escapar e depois de apanhar e bater, consegui fugir. Lancei um último olhar no túmulo quando já havia pulado o portão. A luz amarelada dos postes iluminava-o silencioso e ameaçador.

  Na manhã seguinte o coveiro Nicolas se encarregou de fechá-lo e pelo que soube encontrara o caixão fechado e o corpo dela na mesma posição em que a enterrara. Jamais tive ou terei coragem de dizer tudo isso a alguém, pois temo parar num hospício...

 

Céus, já são mais de três da madrugada. E nesse momento ouço leves batidas na porta. Quem será? Meu corpo está arrepiado devido à sinistra intuição que me diz que é aquele ser traiçoeiro e de olhar feroz. Paranóia! Devo abrir a porta? ... Vou abrí-la, se for algum amigo ou parente, apagarei este último parágrafo, se não o fizer, hora, então infelizmente chegara o meu fim.

 

Autor: Bruno Wolff/ 2010